Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

por | 26/03/09 | Cultura e Música, Espiritualidade | 6 Comentários

V – Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
por Alberto Caeiro*

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei.Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

*Alberto Caeiro (16 de Abril de 18891915) é considerado o mestre dos heterônimos de Fernando Pessoa, apesar da sua pouca instrução.
Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão (“pensar é estar doente dos olhos”). Proclama-se assim um anti-metafísico. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. À superfície é fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual, que faz lembrar Cesário Verde, citado muitas vezes nos poemas de Caeiro por seu interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. Apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos” que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade.
Fernando Pessoa formulou 3 princípios do sensacionismo:

  • Todo objeto é uma sensação nossa;
  • Toda a arte é a convenção de uma sensação em objeto;
  • Portanto, toda arte é a convenção de uma sensação numa outra sensação.

E Caeiro foi o heterônimo que melhor interpretou esta tese, pois só lhe interessava vivenciar o mundo que captava pelas sensações, recusando o pensamento metafísico.
Alberto Caeiro duvida da existência de uma alma no ser humano, quando diz “Creio mais no meu corpo do que na minha alma…”.
Caeiro é um poeta materialista, visto que crê que o mundo exterior é mais certo do que o mundo interior.
Fotos: Brazilian savannah, por robertz65 e Capivari Waterfall 1, por CMPT.

6 Comentários

  1. Shin Tau

    “Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
    Como quem abre os olhos e vê,
    E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
    E amo-o sem pensar nele,
    E penso-o vendo e ouvindo,
    E ando com ele a toda a hora.”

    Olá Gabriel Dread,

    é com grande prazer que descubro este seu espaço 🙂 e que melhor do que Caeiro para me apresentar.
    Esta parte que copiei é a minha preferida, obrigada por partilhar este lindo poema, do meu heterónimo preferido de Pessoa. A comtemplação e a não rotulação é uma das maiores liberdades que podemos encontrar em nós. Libertarmo-nos do pensamento é, por vezes, difícil mas quando o conseguimos, hummm… simplesmente divino!!!

    Ainda um à parte.
    Descobri algo que nunca tinha visto, apesar de ter estado sempre à frente dos meus olhos, a data de nascimento deste heterónimo, por isso também obrigada.

    Um abraço iluminado,

    Shin Tau

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  2. cova-do-urso

    Gabriel, você é maravilhoso, estando a divulgar Alberto Caeiro, com um excelente post e que mais uma vez mostra a genialidade do nosso Fernando Pessoa.

    Gostei de ver aqui a Shin Tau. Ainda bem que vocês os dois se encontraram. Não há acasos na vida. Caeiro diz o contrário – 🙂

    Abraço

    António

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  3. Astrid Annabelle

    Olá Gabriel:
    Gostei dessa parte:
    “E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
    E amo-o sem pensar nele,
    E penso-o vendo e ouvindo,
    E ando com ele a toda a hora.”
    O sentimento que tive ao ler este poema foi de encontros e desencontros!
    Namasté!
    Astrid

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  4. Adelaide

    Olá Gabriel

    Adorei este poema de Alberto Caeiro. Simplesmente maravilhoso!

    Abraço

    Adelaide Figueiredo

    Responder
  5. Anônimo

    Agora tive a motivação para escrever um comentário! o Poema V, é meu poema preferido em todo este mundo, que legal lê-lo no seu blog. Não precisa publicar este comentário, só o escrevi pois acabei de responder sua pesquisa e surgiu esta postagem motivadora! Grande abraço, K.

    Responder
  6. Anônimo

    Que tal postar o Poema do Menino Jesús…

    beijos e parabéns pelo site!

    Walkiria

    Responder

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