Entre os mortos

por | 15/03/07 | Espiritualidade | 0 Comentários

Estou lendo “As Máscaras de Deus – Mitologia Primitiva” do mitólogo Joseph Campbell… coloco aqui algumas passagens do capítulo 2- As marcas da Experiência, tópico VI. O Impacto da Velhice:
“A morte é prenunciada pelos primeiros sinais da velhice, que mesmo hoje surgem demasiado cedo para agradar. Muito mais cedo no passado primitivo!Quando a mulher de quarenta e cinco era uma velha e o guerreiro de cinqüenta em aleijado artrítico e quando, além do mais, a doença e os acidentes nas caçadas e nos combates eram exeriências imeditatas de todo mundo, a Morte era uma presença poderosa a ser enfrentada corajosamente, mesmo dentro do santuário mais seguro, e cujo poder tinha que ser assimilado.
(…) Nas ilhas do Havaí no Pacífico, se pensava que se chegava ao reino dos mortos através de fendas na terra. Elas eram chamadas de ‘lugares de partida’ e havia uma para cada região habitada. Ao chegar, o espírito encontrava ali uma árvore e, à volta, um ajuntamento de crianças pequenas que davam as instruções. Um lado da árvore era viçoso e verde, mas o outro era seco e frágil e, segundo uma versão da proeza, o espírito tinha que subir ao topo pelo lado seco e descer pelo mesmo lado até o nível onde as crianças o orientariam; se fosse usado um galho verde, ele se quebraria e o espírito tombaria aniquilado. De acordo com uma segunda versão, entretanto, era um galho verde que devia ser agarrado, pois ele então se rompia e atirava o espírito rapidamente para ‘o labirinto que leva ao mundo subterrâneo’.
É uma imagem reveladora, essa da árvore com galhos enganosos, postada na entrada para um reino onde o que parecesse morto tinha que ser reconhecido como estando vivo e o vivo, morto. É uma imagem da esperança que em todos os lugares permitiu que os velhos entrassem voluntariamente pela passagem escura. E contudo, nem todos podem passar; apenas aqueles que entendem o segredo da morte – que a morte é o outro lado do que conhecemos como vida e que, exatamente como temos que deixar a infância quando assumimos os deveres da maturidade, temos também que deixar a vida quando entramos na morte.
(…) Para aqueles que tinham êxito absoluto na passagem da árvore enganosa, havia moradas permamentes. (…) E nesses domínios privilegiados praticavam-se esportes arriscados, como tinham sido na vida, e havia alimento em abundância, sem necessidade de cultivá-los – inhame, coco e bananas. O lugar mais elevado dessas moradas do além ficava numa cratera flamejante no topo da montanha da deusa-vulcão Pele, onde não havia dor, mas apenas puro deleite.
A atmosfera desse paraíso polinésio dos guerreiros corresponde à do salão de armas do deus germânico dos guerreiros, Votam (Odim, Othim), a quem as Valquírias levavam o morto heróico. (…)
A árvore havaiana com os galhos enganosos, da qual um lado parece ser vivo mas o outro morto, sugere o Freixo do Mundo Édico, Yggdrasil, cujo tronco era o eixo dos céus giratórios, com a Águia Cósmica empoleirada em seu topo, quatro veados correndo entre seus galhos, pastando sobre suas folhas, e a Serpente Cósmica roendo sua raiz:
O freixo Yggdrasil sofre de angústia,
Mais do que os homens são capazes de saber:
O veado morde em cima; de lado [ele] apodrece;
E o dragão rói embaixo.
É na maior e melhor de todas as árvores, o freixo, que os deuses pronunciam julgamentos todos os dias. Seus galhos espalham-se sobre o mundo e erguem-se por sobre o céu. Suas raízes penetram no abismo. E seu nome, Yggdrasil, significa ‘o cavalo de Ygg’, cujo outro nome é Odim; pois esse grande deus certa vez ficou pendurado naquela árvore por nove dias, como uma forma de auto-sacrifício.
Eu suponho que fiquei pendurado naquela árvore ao vento,
Pendurado nela por nove noites completas;
Com a lança fui ferido e sacrificado eu fui
A Odim, eu mesmo e a mim mesmo,
Naquela árvore da qual ninguém jamais saberá
Que raiz corre sob ela.
Certamente, aqui nos deparamos com uma série de imagens habilmente criadas para transmitir certas esperanças, medos e realizações relativas ao mistério da morte; tais como as que bem poderiam ter surgido espontanemante em muitas partes do mundo nas mentes daqueles que enfrentavam a passagem escura. Ou, já que essas imagens da árvore e do homem ao mesmo tempo morto e vivo não aparecem isoladas, mas sempre em contextos comparáveis de motivos associados, não deveriamos procurar indícios de uma distribuição pré-histórica da coexistência a partir de um único centro criador de mitos para o resto do mundo? Nos ritos da puberdade encontramos a imagética do andrógino associada com uma árvore ou grande poste. Aqui, temos novamente a árvore e, outra vez, uma associação dual: não a dualidade do masculino e do feminino, mas a da vida e da morte. Estariam essas duas dualidades mitologicamente relacionadas? Para entender que elas podem, de fato, estar vinculadas, precisa-se apenas pensar na história do Primeiro Adão da Bíblia, que se tornou Adão e Eva, e ambos foram abatidos pela árvore, trazendo ao mundo tanto a morte quanto sua contraparte, a procriação. Então, acrescente-se a isso a figura do Segundo Adão, Cristo, através de cuja morte na ‘árvore’ foi dada ao homem a vida eterna, e a chave para a estruturação da imagem multifacetada terá sido encontrada.
(…)
Entre as tribos caçadoras, cujo estilo de vida está baseado na arte de matar, que vivem em um mundo de animais que matam e são mortos e dificilmente conhecem a experiência orgânica de uma morte natural, toda morte é consequencia de violência. (…)Há uma série de exemplos, da África e da Antiguidade, de cadáveres amarrados com cordas, ataduras ou redes para impedir que seus fantasmas vagassem; com os orifícios do corpo obstruídos para manter os fantasmas aprisionados; enterrados sob pilhas de pedras para mantê-los oprimidos ou simplesmente jogados aos lobos e hienas, com a esperança de que fossem consumidos na mesma noite.
Entre os nativos da tripo Aranda da Austrália, a aldeia onde ocorreu a morte é incendiada, o nome da pessoa morta jamais é mencionado.
(…)
Para os povos agricultores das estepes férteis e das selvas tropicais, por outro lado, a morte é uma fase natural da vida, comparável ao momento da semeadura, para renascer.
(…)
Quando os ritos e motologias, mesmo dos mais primitivos agricultores, são comparados com os de qualquer tribo de caçadores, salta à vista que eles representam um aprofundamento significativo, tanto do sentimento religioso quanto do compromisso do indivíduo para com a vida comunal; os caçadores, comparativamente, são individualistas rudes. Pois é nos rituais e mistérios do grupo que os agricultores não apenas conquistam seu senso de entidade tribal, mas também descobrem o caminho pelo qual os perigos da jornada para o reino feliz dos mortos devem ser superados, e assim atingida a companhia dos ancestrais, que desde ali funcionam como uma presença contínua na memória viva do rito. Os vivos e os mortos são dessa maneira, por assim dizer, os hemisférios equiparados, a luz e a sombra, de uma única esfera que é o próprio ser, e o mistério ou milagre desse ser é a referência última de tais símbolos.
(…)
No primeiro domínio [dos caçadores primitivos], o objeto supremo da expriência é o animal. Morto e esquartejado.”

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