por Irene Ribeiro de Castro Siqueira*
Existe em minha terra, velha terra povoada de lendas e histórias, uma passagem estreita e profunda entre dois barrancos, que o povo chama a “Cova da Boa Viagem”.
Por que esse nome “Boa Viagem” quando a passagem é estreita e escura, no solo e nos lados apontam pedras, tudo enfim que possa dificultar a marcha do cavaleiro?
Os homens se benzem assustados ao penetrar nela, as mulheres murmuram preces para o descanso eterno daquelas almas das quais as cruzes ali existentes mantém viva a presença.
O eco das passadas dos cavalos ressoa lugubremente, lembra gemidos…
Tal denominação nos encabulava e uma vez uma velha negra, remexendo no fundo de sua memória já cansada de tanto ver, de tanto ouvir, deu-nos a chave do enigma.
Foi há muito tempo…
A pretensiosa cidadezinha de hoje era apenas a Picada do Campo Grande da Conquista de Goiás.
A descoberta do ouro em Goiás agitava os aventureiros. A “Picada” via passar aqueles homens que iam em busca do ouro e que muitas vezes voltavam com ele.
À entrada daquele povoado humilde, destacava-se uma casa, a casa de Seu Salustiano.
Ali os viajantes pousavam. Seu Salustiano era a própria gentileza, recebia-os amavelmente; peritas escravas tornavam sua cozinha afamada e a bela Dona Otília era a hospedeira perfeita.
Conseguia dar ao seu recato de mineira tal graça e tal encanto, que os olhos dos viajantes, cansados de contemplar serras e montes, cansados de tanto interrogar o horizonte sobre a distância que os separava do alvo, esses olhos descansavam ao ver-lhe a figura gentil.
À noite, na varanda, à luz das estrelas, os viajantes conversavam com o dono da casa. O ambiente era propício a confidências… Os forasteiros se deleitavam aos encontrar naquelas brenhas um espírito alegre e compreensivo.
E falavam, falavam…
Às vezes eram apenas planos, planos para a conquista da riqueza, planos esboçados ou já frustrados; mas de outras, era as vozes alegres daqueles que levavam consigo, como mensageiros ou proprietários, ouro, muito ouro.
Um vinho cálido lhes destravava a língua, e Seu Salustiano, maneirosamente, os olhos brilhando no escuro, indagava tudo: o que levavam, quanto levavam, se não tinham medo dos aventureiros e ladrões que infestavam aquelas paragens.
E os hóspedes, amáveis, se abriam.
Finalmente, o dono da casa os aconselhava que fossem dormir, que era tarde, que precisavam madrugar.
Os viajantes se deitavam em leitos macios, cheirando a alfazema, e, entre dois bocejos, elogiavam a bondade de Seu Salu, a beleza de Dona Otília.
Na cozinha, dois escravos esperavam o patrão.
As informações sobre o ouro que levavam eram cuidadosamente transmitidas aos pretos e lá saiam eles dentro da noite e iam para a emboscada, à entrada da estreita passagem.
Madrugada escura, levantava-se Dona Otília; era-lhes servido um gostoso café e Seu Salu acompanhava-os até a porta desejando-lhes uma “Boa Viagem!”
E assim caminhavam para a morte, levando com eles os votos amáveis de Seu Salu que lhes desejara “uma boa viagem”.
Era a última voz humana que ouviam.
O compasso dos cascos dos cavalos repetiam “Boa viagem!”, “Boa viagem!”
[vc_row][vc_column][vc_column_text css=”.vc_custom_1484430348787{margin-top: 10px !important;margin-right: 30px !important;margin-left: 30px !important;padding-top: 30px !important;padding-right: 30px !important;padding-bottom: 30px !important;padding-left: 30px !important;background-color: #c6d3ff !important;}”]* Irene Ribeiro de Castro Siqueira (1923-2016): nascida em Itapecerica, Minas Gerais, foi professora, advogada, servidora pública, mãe, avó, bisavó… e também escritora! Leia também “Mater Dolorosa“, da mesma autora.
Esse post é uma homenagem a minha querida avó Nena. Ela viveu uma vida plena e repleta de alegrias e conquistas e esteve ao lado do amado Américo por quase 62 anos, segurando na sua mão até o último dia de sua vida. Me sinto honrado de ter convivido com ela e ter tido a sorte de nascer seu neto.
A Vó Nena dava muita importância para a família, sempre fez questão de promover encontros dos filhos e netos. Muita bênção podermos nos despedir dela dessa forma, juntos em família. Ela estará para sempre conosco, 4 filhos, 8 netos e 5 bisnetos (por enquanto) e junto de todos e todas que tiveram o privilégio de conviver com ela. Viveu plenamente e descansou em paz, sem ter visto nenhum de seus descendentes falecer. Gratidão, vó Nena. Descanse em paz.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][/vc_row][vc_column][/vc_column]

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva Encontros e Desencontros, do Blog Palavrentas e Escrevedores, da Aléxia. O textos serão publicados no blogue dela com o devido link.
Belíssimo texto. Muito bem escrito e enternecedor. Abraço.
Seu Salustiano e gangue, como todos os malandros são simpáticos, sedutores…
Belo blog.
Interessante
@António: que bom que gostou. (To respondendo tudo, meio atrasado mas pelo menos tô respondendo… eu chego lá!)
@Compulsão Diária: agradeço muito e irei repassar para minha avó seus elogios.
Abração
Gabriel Dread
Olá Gabriel gostei muito de ler este lindo conto.Beijinhos.
Maria de Fátima!
Vou retransmitir seu comentário à Dona Irene…
Abração
Gabriel Dread