A redução da redução sociológica de Guerreiro Ramos

por | 11/03/11 | Ciência, Revolução | 8 Comentários


Redução Sociológica: um olhar criterioso sobre a ciência.

Alberto Guerreiro Ramos é um dos meus autores preferidos. Já escrevi diversos textos sobre este grande cientista social, mas ainda não abordei um conceito central em sua obra: a redução sociológica. que tem três significados distintos:

  1. Assimilação crítica da produção estrangeira;
  2. Atitude parentética, entendida como preparação cultural da pessoa para transcender, no limite do possível, os condicionamentos circunstanciais que conspiram contra sua expressão livre e autônoma;
  3. Superação da ciência social na forma institucional e universitária em que se encontra.

Meu objetivo com este artigo é fazer uma “redução” da redução sociológica.

A principal preocupação de Guerreiro Ramos era ser um sociólogo “em mangas de camisa”, inserido e atuante em seu contexto social, adotando uma postura política transformadora. Ele estava se rebelando contra a sociologia que era (e ainda é) dominante nas universidades brasileiras: uma sociologia “de gabinete”, distante da realidade nacional, e “consular”, onde o sociólogo atua menos como um solucionador de problemas e mais como representante de uma teoria estrangeira incapaz de explicar a realidade local, apoiando assim a dominação cultural e científica que os países periféricos sempre sofreram e continuam sofrendo.

Na década de 1950, época em que o Guerreiro escreveu seu livro A Redução Sociológica, Florestan Fernandes era o “Papa” dessa ideologia que desconsiderava todo produto científico produzido no Brasil que não fazia referências aos europeus e norte-americanos. E a USP era o “Vaticano” dessa ideologia. Para o Florestan e seus seguidores, a única e verdadeira ciência era aquela proveniente dos “grandes centros científicos” como a França e os EUA, enquanto os brasileiros eram considerados como incapazes, sem refinamento teórico adequado ou ainda, sem recursos materiais para poder “fazer ciência de verdade”.

Guerreiro e Florestan (ajudado por seus puxa-sacos discípulos) tiveram um debate público, mas infelizmente a turma dos uspianos venceu a disputa, se tornando a corrente dominante na sociologia brasileira. Resultado inevitável, pois a briga era desleal, um sociólogo baiano cassado pela ditadura contra a maior instituição universitária do país. Resultado: ainda hoje, fazer ciência no Brasil é sinônimo de importar teorias e aplicá-las no estudo da realidade brasileira. Nossos grandes e autênticos teóricos, como Guerreiro Ramos, foram sumariamente esquecidos e ignorados.

Vamos pensar agora se a redução sociológica ainda pode ser aplicada nos dias de hoje:

(1) Assimilação crítica da produção estrangeira

Pegue um livro, artigo ou tese e “reduza-o” à questões que podem se aplicar ao seu próprio estudo, contexto, etc… Esse conceito fica um pouco desencaixado num mundo globalizado, onde a ideia de “nação” parece não fazer mais muito sentido. Mas, mesmo vivendo em um mundo globalizado, um “alemão” vai ter uma perspectiva totalmente diferente de um “brasileiro”, apesar de não existirem mais nacionalidades puras…

Além disso, podemos pensar não só em questões regionais como históricas também. A ideia aqui é refletir sobre uma determinada teoria e extrair dela os pressupostos que o autor adotou, o contexto histórico e geográfico em que ele estava inserido, críticas à teoria dele, lacunas e falhas, etc… O que sobrar disso tudo, você vê se faz algum sentido aplicar no seu próprio estudo.

Para podermos adotar uma determinada teoria, temos que tomar o cuidado de não cometer o que Guerreiro Ramos chama de “hipercorreção”, ou seja: confiar tanto na teoria que esta usando que começa a desconsiderar tudo que você vê na prática que contradiga suas fontes. O resultado dessa importação acrítica de teoria é que você acaba fazendo uma leitura cega e viciada do seu objeto de estudo. Ou então, é incapaz perceber fenômenos da realidade que nenhuma teoria explicou ainda, pois “se não está na teoria, não tem importância científica”… Imagine só que estagnação do conhecimento deriva deste tipo de conduta… E isso é justamente o que a grande maioria dos cientistas sociais brasileiros tem feito em seus trabalhos….

A Wikipedia na língua portuguesa também sofre de um processo parecido de assimilação acrítica: aparentemente, apenas os verbetes e as ideias que já existem na língua inglesa são considerados relevantes, salvo raras exceções.

(2) Atitude parentética

Assuma uma atitude crítica perante a realidade, as organizações e o seu objeto de estudo. Faça uma “redução” da realidade que você observou, tentando remover as particularidades para se chegar a uma generalização… Mas tenha em mente que essa atitude parentética é difícil de manter, tem que ser constantemente crítico de tudo, até de si mesmo… Se a redução for feita de forma acrítica, vira reducionismo, simplificação grosseira sem validade…

E a generalização final, mesmo se feita de forma crítica, também será apenas uma hipótese, uma conclusão que teria que ser verificada em estudos posteriores para ser realmente universal.

(3) Superação da ciência social na forma institucional e universitária em que se encontra

É uma proposta de total reformulação da ciência. Essa parte fica difícil de encaixar num estudo teórico-empírico como os que são comuns em artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado… O máximo que podemos fazer nesses casos é adotar perspectivas científicas que já conseguiram superar a ciência social institucionalizada, universitária e funcionalista/utilitarista… Sem esquecer de fazer a redução destas perspectivas (voltando ao primeiro sentido do termo).

Utilize os autores que já revolucionaram, reduza-os e você estará contribuindo para criar uma nova ciência social multidisciplinar, dinâmica e pluralista, além de conseguir explicar a realidade com mais fidelidade. Ou então, escreva logo um livro revolucionário para a ciência, como Guerreiro Ramos fez em sua última obra “A Nova Ciência das Organizações”, de 1981.

Quem quiser saber mais sobre os três sentidos da redução sociológica de Guerreiro Ramos, o autor explorou detalhadamente cada significado nas seguintes obras:

  1. Assimilação crítica da produção estrangeira (A Redução Sociológica – 1958);
  2. Atitude parentética, entendida como preparação cultural da pessoa para transcender, no limite do possível, os condicionamentos circunstanciais que conspiram contra sua expressão livre e autônoma (Mito e Revolução Brasileira – 1963; Modelos de Homem e Teoria Administrativa – 1970);
  3. Superação da ciência social na forma institucional e universitária em que se encontra. (Situação atual da sociologia – 1958; Administração e estratégia do desenvolvimento – 1966; A Nova Ciência das Organizações, 1981)

 

Redução blogueira (ou seria blogística?)

Guerreiro Ramos considerava que nos países periféricos, as pesquisas sociológicas não podem “se dar ao luxo” de estudar questões pequenas da vida cotidiana, “detalhes tão pequenos de nós dois”. Para ele, países como o Brasil tem uma URGÊNCIA de resolver problemas de ordem prática como a desigualdade social, a intensa degradação ambiental, a dominação cultural e científica estrangeira, o centramento da sociedade no mercado, a massificação da cultura, a idiotização da população pela mídia e pela publicidade, etc…

Tenha isso em mente quando estiver praticando sua redução, seja ela sociológica… ou mesmo blogueira: mire alto, nos grandes dilemas e problemas que a humanidade enfrenta atualmente.

Gostei dessa ideia de redução blogueira! Vou conceituá-la como:

(1) assimilação crítica da produção midiática;

(2) atitude parentética, entendida como preparação cultural do blogueiro para transcender, no limite do possível, os condicionamentos circunstanciais que conspiram contra sua expressão livre e autônoma;

(3) superação das mídias (revistas, jornais, televisão, blogs) nas formas totalitárias, idiotizantes, manipulatórias e alienantes em que se encontram.

Por falar em redução blogueira (ou seria bloguistica?), esse conceito que eu (acho) que acabei de inventar já se manifestou em diversos artigos aqui no Irradiando Luz.

Gostou? Comente! E lembre-se de fazer a redução blogueira em seus comentários e nos seus próprios artigos.

(imagem: parisneto)

 

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8 Comentários

  1. Ana Araujo

    Salve, Gabriel!
    Ótimo texto.
    Que gere frutos.
    Abs,
    Ana

    Responder
  2. Pedro F.

    até onde eu sei a escola paulista sempre se esforçou para criar uma teoria que desse conta da modernização periférica.

    Responder
  3. Mauricio

    Muito bom. Parabéns pela análise

    Responder
  4. Rosalia Lemos

    Parabéns pelo texto.
    Gostaria de observar que o racismo neste país é tão grande e este mal atingiu Guerreiro Ramos. Imagine esse Brasil, ainda racista, em 1958, uma disputa intelectual com Florestan Fernandes?
    Estou terminando minha tese de doutorado em Política Social e estou lendo este livro e o "O problema do Negro na Sociologia Brasileira" que por sinal, é muito bom também.
    Obrigada e continue desenvolvendo a "nova ciência" Redução Bloguista (acho mais científico este nome. rsss.)
    Axé!

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  5. Ana Mello

    Olá Gabriel lembrei muito do trabalho de Nildo Ouriques – O colapso do figurino francês.

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  6. Wagner Soares de Lima

    Excelente texto.
    Ajuda a compreender a ideia de antropofagia organizacional de Caldas e Wood Jr.
    Mas nada se compara a capacidade crítica de Guerreiro Ramos.
    Parabéns por nos trazer mais um pouco desse mestre.

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  7. Cicero Santos

    Muito bom o tema explorado. Sociólógos como Guerreiro Ramos, que alcançou o estágio da liberdade intelectual investigativa, apesar do entorno adverso em que viveu, são, infelizmente, raros. Homens raros acabam tendo problemas com o “estabelecido” pela cultura e o mundo político-organizacional vigente nas universidades. O que mais temos são puxa-sacos. A área que mais puxa-sacos existem, vendidos e entreguistas é sem dúvida, a economia, a ponto de existir faculdades que excluem K.Marx do currículo. Universidade, em si mesma, já é uma área fechada em interesses restritos. Isso prejudica enormemente a formação e autonomia dos formandos.

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